I know not what tomorrow will bring.

segunda-feira, 12 de novembro de 2012

Sobre O Banqueiro Anarquista – notas de leitura.

Filipe Ceppas

Advertência: este texto ainda está em formato de notas, escritas para participação no debate sobre a montagem da peça do Fernando (do Pessoa e do Lopes Lima). Apenas tentei costurar as notas simulando um “texto corrido”, que ainda não existe. Tudo aqui é pura impressão, diante da constatação de minha enorme ignorância do universo extremamente rico e prismático da obra de Pessoa.

Nunca fiz mais do que fumar a vida (Álvaro de Campos)

Talvez seja possível entender O banqueiro anarquista sob o desígnio da lei do Fado, isto é, da irracionalidade melancólica de todas as coisas que não é simplesmente a afirmação de uma “metafísica da luz do sol”, mas de um metafísica da luz do sol que se nega e se afirma a si mesma através da poesia, de um pensamento que afirma e recusa o pensamento.

Os deuses, não os reis, são os tiranos.
É a lei do Fado, a única que oprime.
Pobre criança de maduros anos,
Que pensas que há revolta que redime!
Enquanto pese, e sempre pesará,
Sobre o homem a serva condição
De súdito do Fado
(27-5-1922)

Nada, Lidia, devemos
Ao Fado, senão tê-lo.
(Odes de Ricardo Reis / 20-11-1928)

   
É significativo que Pessoa tivesse querido traduzir o texto para o inglês e publicá-lo, como estratégia de se tornar conhecido na Europa, levando em conta, ao mesmo tempo, que, para ele, Pessoa, O Banqueiro Anarquista  participa de um grau inferior da heteronomia:

No primeiro grau, a personalidade distingue-se por ideias e sentimentos próprios, distintos dos meus, assim como, em mais baixo nível desse grau, se distingue por ideias, postas em raciocínio ou argumento, que não são minhas, ou, se o são, o não conheço. O Banqueiro Anarquista é um exemplo deste grau inferior; o Livro do Desassossego e a personagem Bernardo Soares são o grau superior.

Se levamos a sério essas duas advertências, leituras do conto mais restritas à análise da “mensagem política” do texto (sobretudo quando esta mensagem seria entendida sob o signo da “intenção do autor”) tornam-se problemáticas. As advertências parecem nos conduzir, antes, às relações entre o conto e as questões da ficção e da heteronomia, condição para que, num segundo momento, se compreenda melhor os porquês da trama política apresentada no texto, e do tratamento que o autor lhe confere. Segundo Massaud Moisés, o O Banqueiro destoaria da prosa de Pessoa, marcada pelo rigor da argumentação, mas atenderia à demanda programática de um autor que é “jogador intelectual”, “espécie de prestidigitador”, “mágico”, “seguro de que ‘verdade’ e ‘ilusão’ constituem, quando muito, faces da mesma moeda” (p.130):

…finge-se um banquete em que, a fingir falar de coisas sérias, se fazem declarações absurdas, ou em que se enfileiram disparates a sério, como se uma encenação teatral se tratasse, a fim de que os comensais passassem o tempo amenamente, e nós, leitores, com eles. Banquete sofístico, portanto. (Moisés, Fernando Pessoa: o espelho e a esfinge, p.129)

Essa aproximação à sofística, entretanto, parece estranha, pois toda a obra de Pessoa parece funcionar muito mais no registro de paradoxos platônicos do que no regime dos sofistas (daqueles que vendem persuasão como se fosse sabedoria — o que Pessoa nunca faz). Pessoa reativa de modo inverso o paradoxo de Platão, que faz literatura condenando a literatura. Pessoa filosofa condenando a filosofia (“O único mistério é haver quem pense no mistério”). E, precisamente, algo que costuma ficar absolutamente na penumbra nas análises sobre O Banqueiro que pude consultar até aqui é a relação entre ficção e ficção social… Não é uma economia o que rege o paradoxo de uma poesia que filosofa para questionar o valor da filosofia e da própria poesia?

“…a luz do sol vale mais que os pensamentos
De todos os filósofos e de todos os poetas.” (grifo nosso)


O termo “ficção social”, contraposto a “convenção social”, joga com a literatura enquanto parte das mazelas que se contrapõem às qualidades naturais.

Ora essas ficções sociais são más por quê? Porque são ficções, porque não são naturais.
O mal verdadeiro, o único mal, são as convenções e as ficções sociais, que se sobrepõem às realidades naturais.

O próprio texto, O Banqueiro Anarquista, a literatura, a arte, não seria apenas mais uma outra ficção social e, portanto, má por natureza, apenas por não ser natural, por valer menos do que a luz do sol? Mas Pessoa anuncia, logo no início do conto, uma zona de indistinção, transitória e incontrolável, entre natureza e cultura, entre qualidades naturais e ficções sociais.

Qual é a ficção mais natural? Nenhuma é natural em si, porque é ficção; a mais natural, neste nosso caso, será aquela que pareça mais natural, que se sinta como mais natural. Qual é a que parece mais natural, ou a que sintamos mais natural? É aquela que estamos habituados. (V. compreende: o que é natural é o que é do instinto; e o que não sendo instinto, se parece em tudo com o instinto é o hábito. Fumar não é natural, não é uma necessidade do instinto; mas, se nos habituamos a fumar, passa a ser-nos natural, passa a ser sentido como uma necessidade do instinto.)

Noutro texto, que parece fazer eco a muitas das imagens poéticas de Pessoa, quando o homem se afasta das ficções sociais, ele se aproxima antes da loucura e da genialidade, mais do que do instinto ou da animalidade:

Loucos são os heróis, loucos os santos, loucos os gênios, sem os quais a humanidade é uma espécie animal, cadáveres adiados que procriam. (“Sobre um manifesto de estudantes” [p.34 OC])

Para Pessoa, portanto, parece haver maior proximidade entre as ficções sociais e as qualidades naturais do que entre elas e o gênio ou o louco. E há ficções que são mais naturais, como seria a própria forma “lógica” de argumentar do banqueiro anarquista. É dessas que precisamos partir para superar as antinomias nas quais nos enredamos quando queremos superar a opressão das ficções sociais. O exemplo do fumo, recorrente no texto, é significativo: o fumo é espírito (sopro, alma) e objeto de troca, fundamental nas cerimônias sociais entre os índios. Ele é, portanto, essa zona liminar de indistinção entre natureza e cultura.
É interessante perceber que algumas críticas feitas ao texto estão centradas no absurdo da idéia de um anarquista que resolveu ser banqueiro, isto é, que encontra na acumulação do dinheiro uma saída política. Mas, se levarmos a sério o título, teríamos que inverter a lógica do texto e entender como um banqueiro poderia ser anarquista. E o texto é claro neste sentido: o banqueiro é anarquista quando torna-se superior ao dinheiro, quando reduz o dinheiro à inatividade, quando se torna, ele, banqueiro, livre de sua influência:

Procurei ver qual era a primeira, a mais importante, das ficções sociais. Seria a essa que me cumpria, mais que a nenhuma outra, tentar subjugar, tentar reduzir à inatividade. A mais importante, da nossa época pelo menos, é o dinheiro.
Como podia eu tornar-me superior à força do dinheiro? O processo mais simples era afastar-me da esfera da sua influência, isto é, da civilização; ir para um campo comer raízes e beber água das nascentes; andar nu e viver como animal. Mas isto, mesmo que não houvesse dificuldade em fazê-lo, não era combater uma ficção social; não era mesmo combater: era fugir.
Como subjugar o dinheiro, combatendo-o? Como furtar-me à sua influência e tirania, não evitando o seu encontro? O processo era só um - adquiri-lo, adquiri-lo em quantidades bastante para lhe não sentir a influência; e em quanto mais quantidade o adquirisse, tanto mais livre eu estaria dessa influência.

Não procede, portanto, a idéia de que o banqueiro anarquista se subordine à tirania do capital. Esse é o princípio das análises que denunciam a suposta “falência da imaginação política” de Fernando Pessoa:

o banqueiro anarquista liberta-se de modo egoísta da ditadura do dinheiro, não da tirania do capital, tornando-se capitalista, em virtude das suas qualidades naturais superiores. (J Francisco Saraiva de Sousa, http://cyberdemocracia.blogspot.com.br/2012/02/uma-novela-de-fernando-pessoa-o.html )

Essa denúncia não procede, porque o banqueiro é enfático e recorrente ao exigir a destruição do capital:

Destrua V. todos os capitalistas do mundo, mas sem destruir o capital... No dia seguinte o capital, já nas mãos de outros, continuará, por meio desses, a sua tirania.

Saraiva de Souza é mais feliz quando aproxima o texto de Pessoa a uma perspectiva foucaultiana, apesar de fazê-lo numa pequena ressalva, ao fim do texto, como que concedendo a ele um “prêmio de consolação”:

Fernando Pessoa descobriu à sua maneira a aporia fundamental do poder: a luta contra a dominação gera mais dominação. Este é o aspecto forte do seu pensamento, pelo menos nesta novela.

Outro texto, agora desde uma perspectiva dialética,1 também subordina o conto ao caráter reacionário do banqueiro, como defensor do egoísmo enquanto qualidade natural superior, decretando a “insuficiência” do pensamento político veiculado por Pessoa (“nada de substancial muda no todo”). O comentador parece confundir Pessoa com o banqueiro, e a “mensagem” do texto com a mensagem do autor:

 São conhecidos os pendores nacionalistas, místicos e mesmo autoritários de Fernando Pessoa, não obstante todo seu ceticismo moderno – típicos aliás de um leitor de Nietzsche. Definiu-se politicamente como liberal, anti-socialista e anti-comunista. Sabe-se também que apoiou indiretamente, em certo contexto histórico, o começo da ditadura de Salazar, apesar de mais tarde remedar satiricamente dela. Talvez, "O Banqueiro Anarquista" estava inserido em tal contexto objetivo-subjetivo: rebaixando ideologias revolucionárias através do uso de seus próprios meios, isto é, da argumentação esclarecida, o texto poderia implicitamente ter a intenção de legitimar a necessidade de um Estado autoritário para o desenvolvimento moderno de nações periféricas; a mofa posterior do ditador sendo apenas a de uma ditadura que se tornou "mesquinha" demais, "menor" do que a "necessária", incongruente com a grandeza pátria imaginada pelo cantador de "Mensagem". (Cláudio R. Duarte, setembro/outubro 2005. “Texto para uma apresentação da tradução turca do livro”)


Do nosso ponto de vista, a heteronomia e o estatuto paradoxal da ficção filosófica-antifilosófica de Pessoa nos impedem de identificar uma relação tão direta entre obra e crenças políticas, sem contar que os próprios textos “estritamente políticos” de Pessoa são atravessados de ambiguidades e incongruências. Neste texto, uma “constatação” clara e firmemente enunciada, e que se transforma em princípio fundamental da argumentação, é a de que, ao se unirem para combater a tirania, os homens começam a se tiranizar uns aos outros.

No estado social presente não é possível um grupo de homens, por bem intencionados que estejam todos, por preocupados que estejam todos só em combater as ficções sociais e em trabalhar pela liberdade, trabalharem juntos sem que espontaneamente criem entre si tirania, sem criar entre si uma tirania nova, suplementar à das ficções sociais, sem destruir na prática tudo quanto querem na teoria, sem involuntariamente estorvar o mais possível o próprio intuito que querem promover.”

É a “aporia fundamental do poder”, que vimos ressaltada por Saraiva de Souza. Este é um problema que aproxima o pensamento veiculado pelo personagem (e não a “mensagem” do texto) a autores como Stirner, Rousseau ou Fourier. Mas, ao contrário desses autores, que, cada um a sua maneira, vêem na manutenção ou no resgate das boas qualidades naturais o antídoto para a corrupção social, para o banqueiro anarquista, nós já o vimos, não há “qualidades naturais puras”. 

…éramos quarenta, salvo erro - dava-se este caso: criava-se tirana. (…) …uma tirania que não é derivada das ficções sociais. (…) …esta nossa tirania, se não era derivada das ficções sociais, também não era derivada das qualidades naturais; era derivada duma aplicação errada, duma perversão, das qualidades naturais. (…) É mais natural supor que a longuíssima permanência da humanidade em ficções sociais criadoras de tirania faça cada homem nascer já com as suas qualidades naturais pervertidas no sentido de tiranizar espontaneamente…

É certo que a denúncia da dificuldade da empreitada coletiva não deixa margem a qualquer experimentalismo, mas ela é essencial em tudo o que guarda de crítica ao voluntarismo e à “boa vontade” (pouco importa a conclusão esdrúxula a que chega: “O que há a fazer? É muito simples... É trabalharmos todos para o mesmo fim, mas separados.”). A crítica “nietzscheana” do banqueiro à moral kantiana (e a tudo o que dela permanece no horizonte utópico de esquerda) reforça a crítica ao voluntarismo e à idéia de uma boa vontade natural, aos “desejos naturais” de justiça e liberdade:

As dificuldades eram estas: não é natural trabalhar por qualquer coisa, seja o que for, sem uma compensação natural, isto é, egoísta; e não é natural dar o nosso esforço a qualquer fim sem ter a compensação de saber que esse fim se atinge.

Dada a derrota das “qualidades naturais”, dada a necessidade última de se basear no “sentimento”, o próprio princípio da argumentação lógica desmorona e o banqueiro assume o sarcasmo como arma para jogar razão contra razão, desmontando as falsas evidências dos ismos políticos.
Mas, com isso, ele não se restinge ao sarcasmo nem a uma crítica nihilista, ele avança dois princípios nada desprezíveis para uma perspectiva política emancipatória: o desafio de atrelar a busca pessoal de liberdade com a revolução social (1) é sempre incerto e (2) pressupõe uma luta pessoal e radical de emancipação intelectual (“ninguém emancipa ninguém”, como dizia Jacotot):

As duas dificuldades eram estas; ora repare como ficam resolvidas pelo processo de trabalho anarquista que o meu raciocínio me levou a descobrir como sendo o único verdadeiro... O processo dá em resultado eu enriquecer; portanto, compensação egoísta. O processo visa ao conseguimento da liberdade; ora eu, tornando-me superior à força do dinheiro, isto é, libertando-me dela, consigo liberdade. Consigo liberdade só para mim, é certo; mas é que como já lhe provei, a liberdade para todos só pode vir com a destruição das ficções sociais, pela revolução social. O ponto concreto é este: viso liberdade, consigo liberdade: consigo a liberdade que posso...
…que um tipo nasça para escravo, nasça naturalmente escravo, e portanto incapaz de qualquer esforço no sentido de se libertar... Mas nesse caso..., nesse caso..., que têm eles que ver com a sociedade livre, ou com a liberdade?... Se um homem nasceu para escravo, a liberdade, sendo contrária à sua índole, será para ele uma tirania.

É preciso lembrar e ressaltar que em nenhum momento do texto se relativiza a necessidade de superação do capitalismo, como demonstra a passagem já citada anteriormente:

[interlocutor:] …por esse argumento, a gente quase que é levado a crer que nenhum representante das ficções sociais exerce a tirania...
- E não exerce. A tirania é das ficções sociais e não dos homens que as encarnam; esses são, por assim dizer, os meios de que as ficções se servem para tiranizar, como a faca é o meio que se pode servir o assassino. (…) Destrua V. todos os capitalistas do mundo, mas sem destruir o capital... No dia seguinte o capital, já nas mãos de outros, continuará, por meio desses, a sua tirania. Destrua, não os capitalistas, mas o capital; quantos capitalistas ficam?... Vê?...

É preciso destacar, no mesmo passo, a afirmação radical, por parte do banqueiro, da natureza não-racional da moral e da liberdade:

Repara tu, dizia eu para mim, que nascemos pertencentes à espécie humana, e que temos o dever de ser solidários com todos os homens. Mas a idéia de `dever' era natural? De onde é que vinha esta idéia de `dever'? Se esta idéia de dever me obrigava a sacrificar o meu bem-estar, a minha comodidade, o meu instinto de conservação e outros meus instintos naturais, em que divergia a ação dessa idéia da ação de qualquer ficção social, que produz em nós exatamente o mesmo efeito?
A idéia de justiça cá estava, dentro de mim, pensei eu. Eu sentia-a natural. Eu sentia que havia um dever superior à preocupação só cá do meu destino. (…) Concordo que, naquele momento, venci a dificuldade lógica com o sentimento, e não com o raciocínio. (…)
 Sacrificar-me a uma idéia sem recompensa pessoal, sem eu ganhar nada com o meu esforço por essa idéia, vá; mas sacrificar-me sem ao menos ter a certeza de que aquilo para que eu trabalhava, existiria um dia, sem que a própria idéia ganhasse com o meu esforço - isso era um pouco mais forte... Desde já lhe digo que resolvi a dificuldade pelo mesmo processo sentimental por que resolvi a outra. (grifo nosso)

As metáforas animais do texto ressaltam esse fundo irracional da argumentação:

Se me escamei! Enfureci-me! Pus-me aos coices. Dei por paus e por pedras. Quase que me peguei com dois ou três deles. E acabei por me vir embora. Isolei-me. Veio-me um nojo àquela carneirada toda, que V. não imagina!

Entendo, portanto, que o texto de Pessoa, independente de suas “intenções”, apresenta mais questões abertas do que “mensagens”. Como ficção, como parte dessa ficção social “maior” que é “a literatura”, que vale menos do que a luz do sol, ele não é nunca mero exercício sofístico, mero veículo para expressão de idéia políticas. O autor de O Banqueiro Anarquista “não é o mesmo autor” de Mensagem… E, entretanto, o é, como heterônomo… Esse conto de Pessoa, como toda a sua obra, nos convida a pensar a relação entre literatura e política numa perspectiva mais ampla do que a de mero espelhamento, e pensar a heteronomia para além de uma multiplicidade de vozes de um mesmo autor. Seria preciso, por exemplo, relacionar esse conto a outros de Poe, Oscar Wilde e Baudelaire, com estruturas e elementos por demais semelhantes para serem ignorados (o narrador é um interlocutor passivo, a ubiquidade do fumo em toda a história, o papel do “raciocíonio lógico”, a economia como tema e “metáfora” da própria literatura, etc.).2
Para terminar esse simples começo de conversa, porém, ressalto apenas, e mais uma vez, as forças das questões propriamente políticas presentes no texto. Não parece insignificante constatar, por exemplo, que Pessoa formula, de modo aproximado, em O Banqueiro Anarquista, uma das questões mais caras à filosofia de Michel Foucault: “como desvincular o crescimento das capacidades e a intensificação das relações de poder?” (O que são as luzes? P.349)

Um processo, ou processos, quaisquer pelo qual se contribuisse para destruir as ficções sociais sem, ao mesmo tempo, estorvar a criação da liberdade futura, sem, portanto, estorvar em coisa nenhuma a pouca liberdade dos atuais oprimidos pelas ficções sociais; um processo que, sendo possível, criasse já alguma coisa da liberdade futura...

 E vale lembrar, afinal, o que é um anarquista, para o banqueiro anarquista: “Ora o que é um anarquista? É um revoltado contra a injustiça de nascermos desiguais socialmente - no fundo é só isto.” Se procurarmos, em 1922, os textos e poesias de Fernando Pessoa, que pudessem lançar uma luz sobre o “estado de espírito” do poeta quando da escrita deste conto, encontramos um poema que lega a nós, bisnetos dos opressores e oprimidos de ontem, o enigma e a herança d’O Banqueiro Anarquista:

Não sou ninguém, o meu trabalho é nada
Neste enorme rolar da vida cheia,
Vivo uma vida que nem é regrada
Nem é destrambelhada e alheia.

E um século depois terá esquecido
Tudo quanto estuou e foi ruído
Nesta hora em que vivo. E os bisnetos
Dos opressores de hoje, desta louca luta
Saberão, mas vagamente, a data
— E claramente os meus sonetos.
2-9-1922