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terça-feira, 13 de novembro de 2012

O BANQUEIRO por Guto Beluco

Quem será o banqueiro anarquista? Existirá um anarco-capitalismo? Como juntar no mesmo saco identidades tão opostas? Quem ousaria fazê-lo? Talvez um poeta, bem equipado com seus disfarces.
Satirizando Platão, Pessoa se serve de um banquete: sentam-se à mesa o grande capitalista e o interlocutor ingênuo, a fazer sempre as perguntas certas (aquelas que primeiro ocorrem ao leitor desavisado), para o desfrute retórico de um protagonista que se dispõe a provar o improvável: que o verdadeiro anarquista é aquele que se torna banqueiro, ou algo do tipo.
Na defesa de sua tese (e em sua própria defesa) o personagem desfia uma espécie de autobiografia do espírito, narrando a passagem dos sonhos juvenis ao pragmatismo adulto, das articulações políticas coletivas ao individualismo atroz – e, na prática, cético quanto às utopias.
É necessário perceber que o autor não se propõe a discutir política strictu sensu: o centro de seu interesse é o lugar do sujeito moderno frente ao próprio destino, seus limites, escolhas, esperanças. Usando o discurso de um banqueiro intelectual, Pessoa usa e abusa da razão.
No limite, o texto parece nos insinuar que há uma perversidade inata em cada um de nós –pretensamente civilizados – assim como ousa denunciar o reino da razão em suas pretensões de coerência e verossimilhança. Não é verossímil a existência de um banqueiro anarquista. No entanto, essa espécie de sofista seduz o leitor: nós e o coadjuvante caímos como patos em seu discurso impecável, com olhos brilhando por seu poder intelectual/financeiro e por sua racionalidade exuberante (que não admitiria conter uma disfarçada patologia histérica e egoísta, disfarçada em prosa “filosófica”).
Há um paralelo entre a justificativa elaborada pelo banqueiro (que não nega ser um “açambarcador”)e a própria denúncia – premonitória, pois estamos em 1922 – que faz dos rumos autoritários que acabariam por se tornar hegemônicos na Rússia, pouco tempo após a revolução. Enquanto a Nomenklatura bania os dissidentes em nome de uma“pureza” revolucionária, o banqueiro se torna uma ave de rapina, e justo por conta da radicalidade de sua ideologia “anarquista”. Ambos não hesitam em afirmar eloquentemente suas razões e seu mérito, desprezando os “fracos de espírito”: aqueles que titubeiam na consecução dos seus fins "revolucionários".
É significativo que o discurso denuncie também– de modo obsessivo – o que é chamado de “ficções sociais” quando percebemos que ele mesmo se baseia numa ficção teórica - o "anarco-capitalismo" do banqueiro - e quando sabemos que o próprio dinheiro de um banco é uma ficção (ele vive dessa ficção, emprestando dinheiro alheio a juros e mantendo as contas de quantias virtuais, ficcionais, confiando que os correntistas não irão todos ao mesmo tempo retirar esse dinheiro que não existe...).
 
Quando entendemos o banqueiro anarquista enquanto personagem sintomático e paradoxal, podemos ir além do horizonte das “intenções do autor” ou de uma ideologia oculta por trás da tese exposta pelo banqueiro, fruto de uma experiência pessoal (do banqueiro) que tenta se articular em uma narrativa de perfeita coerência (o que já aponta para as ironias, disfarces e dubiedades nos quais Fernando Pessoa é mestre). É preciso admitir que o banqueiro encarna alguns dos próprios sintomas que denuncia: é a própria contradição entre o discurso e prática que desnuda a opacidade e dureza dos programas ideológicos, dos fundamentalismos discursivos, nada refratários à complexidade das sociedades, das culturas, do próprio ser humano. Um paradoxo ambulante, um sintoma exposto, eis o banqueiro anarquista.

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